quinta-feira, 29 de maio de 2014

Locais assombrados: Hospital Colônia Itapuã



Dos mil moradores do passado, restam 34, todos idosos, na cidade a 60 quilômetros do centro de Porto Alegre. Circulam por ruas e praças quase desertas. Grande parte dos 172 prédios está abandonada. O Centro de Diversões, construção colossal que acolhia bailes e sessões de cinema, agora raramente abre as portas.

 


A história dessa misteriosa e agonizante comunidade — o Hospital Colônia Itapuã — tornou-se mais conhecida com o documentário A Cidade, que revela o cotidiano de 10 dos últimos moradores. Essas pessoas chegaram ali como prisioneiros. Eram pacientes de hanseníase, doença antes conhecida como lepra e tratada em confinamento.




Eva Pereira Nunes, 67 anos, vive há mais de meio século no antigo hospital, nos confins de Viamão, à margem da Lagoa Negra. Veio de um internato em Santo Antônio da Patrulha. Tinha 12 anos. Na caminhonete onde foi enfiada, a enfermeira tentava acalmá-la:

— Não chora, guriazinha. Tu vais para um lugar muito bom.

O lugar era mesmo bom. Inaugurado em 1940 para isolar os doentes, contava até com moeda própria, cunhada em alumínio e com circulação restrita à colônia — uma tentativa de evitar contágios. O sustento era garantido pela lavoura e criação de gado.

Lá dentro, além de trabalharem, os pacientes iam à escola, divertiam-se, casavam-se. Também acabavam em uma cela, cumprindo pena de 10 dias, quando surpreendidos em tentativa de fuga. Eva fugiu várias vezes. Depois, sem ter para onde ir, voltava. No início, viveu em um quarto, no pavilhão coletivo. Trabalhou na lavanderia, no refeitório e na coleta de lixo.

Aos 17 anos, casou-se com outro paciente, Darcy, 27 anos, na igreja católica do hospital. O matrimônio garantiu o direito de se mudar para uma das casas reservadas aos casais. Decidiu não ter filhos. As crianças que nasciam na colônia eram retiradas das mães após o parto e enviadas para o Amparo Santa Cruz, instituição a 40 quilômetros dali.


— Eles eram arrancados da mãe como se fossem bichos — recorda Eva.

Preconceito barrava o retorno para casa

Uma das poucas crianças que cresceram no local foi Paulo Roberto Goulart, 56 anos. Filho de um servidor do hospital, vivia na chamada "área limpa", fora dos muros. Dentro ficava a "área suja", a cidade dos hansenianos. Nas quartas à noite, Paulo entrava para acompanhar a sessão de cinema. Entre suas lembranças estão as visitas dos filhos dos doentes:

— O ônibus do Amparo vinha uma vez por mês. De dentro, a freira levantava a criança e mostrava pelo vidro: "olha, esse é o teu filho".

Nos anos 70, quando se disseminaram os medicamentos contra o Mal de Hansen e caíram concepções equivocadas sobre o contágio, as portas do hospital foram abertas. A maioria dos pacientes foi embora — mas parte deparou com o preconceito e logo retornou. Por ter confinado os pacientes, o poder público se comprometeu a manter os hospitais-colônia enquanto houvesse moradores.

Em 1990, os antigos doentes de Itapuã eram cerca de 150. Uma década depois, as mortes haviam reduzido a população pela metade. Eva está entre os que nunca saíram:

— Ir para onde? Até a família tinha medo. Todos aqui têm um sentimento dividido em relação ao hospital.

Viúva, ela mora sozinha. Tem direito a um benefício mensal, rancho, remédios, não paga luz, água ou aluguel. Eva vê com tristeza sua cidade definhar. O pouco de agitação é por causa dos 54 doentes do Hospital São Pedro levados para dar uso à estrutura. Dias atrás, apareceu a primeira-dama do Estado, Sandra Genro. Eva ficou admirada de ela ter pedido água. Em geral, vê evitarem o contato.

— O lugar ficou triste. A verdade é que o hospital está pendurado por nós. Quando terminarem os pacientes, isso aqui acaba.


Os fantasmas do preconceito

Uma vila que abrigou mais de 800 pessoas era na verdade um campo de concentração para doentes de lepra, discriminados pelo preconceito de uma sociedade desinformada. Abandonado em função dos avanços da ciência, o leprosário ainda abriga 75 doentes que tiveram sua vida transtornada pela discriminação

Hospital Colônia Itapuã, 60 quilômetros ao sul de Porto Alegre, margens da Lagoa dos Patos. É difícil, ao conhecê-lo, não ter a sensação de estar entrando em uma das histórias fantásticas de Gabriel Garcia Márquez, com suas histórias absurdas e distantes da realidade. O antes chamado Hospital de Emergência para Leprosos, que fez história como O Leprosário, foi construído pelo estado no final dos anos 30 nos moldes de uma cidade autônoma, com regras de convívio próprias. As pessoas que adoecessem da praga temida até biblicamente seriam obrigadas a viver lá, trancadas.

Pavilhões de internações, algumas casas geminadas, uma igreja católica, outra luterana, teatro, padaria, escola, cadeia, lavanderia, refeitório, tudo foi feito para dar a idéia de que a prisão era um lugarejo, quando a verdade era inversa: o lugarejo é que era prisão, isolada e segregada do mundo real. A comida e os remédios eram subsidiados pelo estado. Tudo ficaria a cargo dos próprios doentes se não fosse a abnegação de algumas freiras franciscanas da Penitência e Caridade Cristã que, apesar da possibilidade de contágio propagado pelo pânico que acometia a sociedade, ultrapassavam as cercas que isolavam a colônia para ajudar as quase mil pessoas que viviam lá.

Em 1943, quando existiam 859 casos de hanseníase - designação médica para lepra - notificados no Rio Grande do Sul, “eles”, como diz a diretora do Hospital Colônia Itapuã (HCI) Sônia Maria Homem , “eram arrancados dos seus lares. Houve casos de pessoas que vieram no berço”. Como nos anos 50, foram descobertos medicamentos capazes de vencer a invasão corrosiva da doença , o HCI teve direito aos primeiros funcionários. A internação compulsória foi legalmente abolida em 1954 e isso fez diminuir o número de moradores - menos de 350 em 1960. Mesmo assim, a lei não teve capacidade de devolver dignidade às pessoas que foram desumanizadas pela sociedade.

Segundo a direção do HCI, número de habitantes da vila não teve muitas alterações até 1974, quando a Secretaria da Saúde passou a adotar o tratamento ambulatorial como nova estratégia para a redução do número de internos. Liberdade? Não, ironia. A maioria dos doentes depositada foi totalmente esquecida pelas famílias. “O problema, então, passou a ser social”, analisa Sônia. “Muitas dessas pessoas, em função do que passaram, têm transtornos mentais graves e necessitam de cuidados constantes”, diz a diretora do Hospital. Irmã Cleonice, uma das voluntárias, é mais explícita: “Eles eram perseguidos como animais. Tentavam se esconder no mato, mas eram encontrados pela polícia”, lembra.

Uma vez moradoras incondicionais daquele lugar, as pessoas acabavam constituindo família. Quando os filhos nasciam, a tristeza aumentava. Os bebês eram afastados dos pais para não se contaminarem e encaminhadas à instituição Amparo Santa Cruz, também chamada de “preventório”.

Irmã Cleonice conta que as crianças vinham duas vezes por ano para vê-los, mas só de longe. No portal de entrada do leprosário, que exibe em letras já meio apagadas a frase “Não caminhamos sós”, pais ficavam do lado de dentro e filhos do lado de fora. “Eles não podiam se abraçar”, lamenta a religiosa. Cleonice confessa que não sabe o tipo de sentimento que havia entre eles “Eles nunca conviviam. Na verdade, nem se conheciam”, descreve. Irmã Cleonice conta que quando a Ordem solicitou oito voluntárias para trabalhar e morar no hospital - no início sem ter nem a possibilidade de sair de lá - apresentaram-se cem freiras. As únicas pessoas a se aproximar do leprosário tinham a ajuda dos próprios doentes, que também administravam o local. Eram eles que escolhiam as autoridades, assim como o prefeito e o delegado de polícia.

Hoje ficou restrita à característica de Asilo Arkham financiada pelo governo estadual. Por enquanto, o hospital que nem mais hospital é continua sendo a casa de 75 hansenianos, que dividem o espaço daquela cidade fantasma de igrejas, cadeia e pavilhão de diversões fechados com 113 pacientes do Hospital São Pedro com alta periculosidade. Na área existe apenas uma unidade ambulatorial para a comunidade que, segundo a Secretaria Estadual da Saúde, atende cerca de 80 pacientes por dia.

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Semelhanças com campos de concentração
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